INARA – capítulo 11 – “O que é do home, o bicho não come.”

O final do ano estava se aproximando e com ele a formatura da Faculdade de Música Santa Marcelina.
Inara estava entusiasmada pela chegada desse evento. Ao receber o diploma, poderia ir em busca do seu sonho: trabalhar no Colégio Porto Seguro.

Helena, a melhor amiga, cursava a faculdade de música apenas para completar os estudos. Não tinha planos de trabalhar. Não precisava se preocupar com o futuro profissional para ganhar dinheiro. Almejava ter filhos e ser uma boa dona de casa.

Inara havia contado à Helena sobre o seu sonho e os planos para o futuro.
Explicou que o
 diretor geral do colégio, dr. Binelli, era de Angatuba, a cidade onde ela havia sido criada. Os pais de Inara, eram amigos dos familiares do diretor geral e através deles conseguiriam uma carta de recomendação. Na hora oportuna, com o diploma e a carta em mãos, ela se apresentaria ao diretor e com isso esperava ter a chance de conseguir uma entrevista para vaga de professora.

– Você sabia Helena, que o Porto Seguro é a escola que paga os mais altos salários do Brasil? Sei porém que são muito exigentes, se não atingir as expectativas deles, ao final do ano mandam o profissional embora.

– Mas Inara, será que eles vão te aceitar? Recém-formada e com pouca experiência?
– Aí já não sei Helena, mas tenho de tentar. Veremos.

Helena nunca tinha ouvido falar dessa escola.

A festa da formatura chegou. Estavam todas lindas com vestidos longos, cabelos arrumados, bem maquiadas, alegres e acompanhadas por suas famílias. Lá também estava a de Inara. Só a mãe de Helena não compareceu. Inara sentiu-se triste pela amiga.

O grande auditório da faculdade estava todo iluminado e ornamentado com muitas flores. Os formandos eram chamados um a um para subirem ao palco e receberem o diploma. Na sua vez, Inara subiu as escadas. No centro do palco, recebeu o canudo que vinha amarrado por um laço de cetim azul claro. Acariciou o diploma com orgulho e em seguida olhou para a plateia. Tentou visualizar os pais mas os holofotes ofuscaram sua visão. Então, com firmeza olhou para as luzes e pensou:
– Agora sim, posso retribuir o que eles fizeram por mim. Na semana que vem vou ao Porto Seguro para entregar a carta de recomendação ao diretor geral. Por eles, hei de conseguir esse emprego. Eles merecem isso muito mais que eu.

Ao final daquela noite, quando foi se despedir de Helena, ela a convidou para um almoço na casa dos pais do seu marido, no domingo próximo.
No dia marcado, ao chegar para o almoço, Inara  notou que Helena estava esquisita. Não sorria e quando conversava com ela, não a olhava nos olhos. Inara logo pensou:
Aconteceu algo com minha amiga. Será que ela teve problemas com a mãe novamente? Ou, teria brigado com o marido? – Imediatamente procurou com o olhar e viu o marido conversando animadamente com o pai. – Com o marido parece estar tudo bem.
Tentando descobrir o que era, pegou na mão de Helena e disse:

– Podemos conversar um pouquinho?

Helena respondeu:

– Sim, vamos ali para o quarto da minha cunhada. Preciso te falar uma coisa.

Sabia que ela tinha algo pra desabafar. Conheço bem minha amiga. – concluiu Inara.

Ao entrarem no quarto, Helena sentou-se na cama. Com a cabeça ainda baixa e a voz meio embargada, disse:

– Sabe aquela escola da qual você me falou?

– Que escola? – perguntou Inara.

Aquela que você disse que iria pedir emprego assim que se formasse? – continuou Helena.

– Claro, vou lá amanhã de manhã. – respondeu ela animada ao se lembrar.

– Eu estive lá no dia seguinte da nossa formatura. Fui para me inscrever sem muita esperança. Mas quando lá cheguei, após a entrevista com a diretora do curso primário, ela disse que estavam precisando de uma professora de música para assumir imediatamente, e eu fui contratada. Começo na semana que vem.
– completou Helena, agora olhando nos olhos da amiga.

Uma bomba explodiu na cabeça de Inara naquele instante. Não conseguiu reagir. Não queria acreditar no que tinha acabado de ouvir. Fechou os olhos bem apertado tentando acordar do pesadelo. Concluiu que tinha sido traída por sua melhor amiga.

– Como você foi capaz de fazer isso? Você foi sozinha sem falar comigo? Poderíamos ter ido juntas. Se eu soubesse que você tinha interesse em trabalhar, eu daria um jeito de conseguir a entrevista para nós duas. Já pensou a gente  trabalhando na mesma escola? Eu teria o maior prazer nisso.

Helena permaneceu calada. Por sua face, algumas lágrimas escorriam.
Inara prosseguiu:

– Minha melhor amiga, sabendo do meu plano, passa na minha frente, vai sozinha, arruma o trabalho que poderia ser meu, e ainda chora? Você se deu conta de que roubou o meu sonho Helena? Da sua melhor amiga?

Nesse instante, a porta do quarto se abriu e o marido entrou.

Inara, imediatamente disse:

– Agora não, você por favor nos dê licença.

Ele, sem graça, saiu e fechou a porta.

Helena com a voz ainda embargada disse:

– Foi ideia dele, apontando para a porta que o marido tinha acabado de fechar.

– Quando eu contei a ele sobre seus planos e que o colégio pagava bons salários, ele me aconselhou que eu fosse até lá e me inscrevesse também.
Dizia ele que com um bom salário e a mesada do meu pai, faríamos uma poupança para as nossas viagens.

E continuou:

– Quando eu disse que iria falar com você sobre isso, ele me aconselhou não dizer nada. Ele tinha receio de que se fôssemos as duas e só tivessem uma vaga de professora, eles escolheriam você, por ter a carta de recomendação.
Por isso, fui logo no dia seguinte da festa de nossa formatura e assim eu chegaria antes de você.

– Helena, não tenho nada com seu marido. Aliás, nunca fui muito com a cara dele, você sabe. Mas você entende que concordando com ele estaria traindo sua melhor amiga?

– Sim Inara, mas agora somos casados. Além de ouvir seus conselhos, eu devo obediência e fidelidade ao meu marido.
Ele disse que o mundo é dos espertos e que nós duas somos muito bobinhas.

Inara, ao ouvir aquilo, sentiu um gosto amargo que subia do estômago e ia até a garganta. Levantou rapidamente e foi ao banheiro. Precisava vomitar.

Ao se recompor e abrir a porta, deu de cara com marido de Helena, no corredor. Ele andava de lá pra cá, tentando descobrir como estava indo a conversa.

Ao desviar dele para ir à sala, ela disse:

– Com licença esperto, tenho de ir pra casa.

Na rua, entrou no carro, repousou a cabeça e as mãos no volante e chorou por um longo tempo.

Sentia raiva e pena da amiga ao mesmo tempo. Percebeu que ela tinha sido manipulada pelo marido. Só não entendia como ela tinha sido capaz de ceder à vontade dele. Ela jamais faria isso.

Pena ela também sentiu de si própria. Perdera a confiança na amiga e quem sabe, a chance de conseguir o emprego.

Ao chegar em casa, com os olhos vermelhos e o rímel preto escorrido pelo rosto, encontrou a mãe. Abraçou-a e chorou novamente.

– O que houve Inara? – perguntou a mãe assustada.

O pai se aproximou, pegou sua mão e sentaram-se no sofá. Entre soluços ela contou o que tinha ocorrido.
A mãe, com os olhos arregalados, não acreditava no que ouvia. Helena era para ela como uma filha. Achava linda a amizade das duas.

– E agora? O que eu faço? – perguntou Inara.

– Amanhã você vai ao Porto Seguro como havia planejado. – disse a mãe com a voz forte e segura.

– Não vou mais, mãe. Professoras de música não são necessárias tantas num colégio. Helena deve ter sido contratada para a única vaga disponível. Além do mais, não gostaria de trabalhar no mesmo ambiente que ela.
Acho que nunca mais terei coragem de olhar na cara dela. – disse Inara subindo as escadas para o seu quarto.

Precisava ficar sozinha. Queria dormir e tentar esquecer aquele dia.

Na manhã seguinte, sentindo-se melhor pela boa noite de sono, decidiu procurar por outra escola. Tinha de ser tão importante quanto o Porto Seguro.
Descobriu que o Colégio Rio Branco também era bastante conhecido. Ligou para escola e pediu para marcar hora com o diretor geral. Queria falar logo com o chefão da instituição.
Ao perguntarem qual era o assunto, ela rapidamente respondeu:

– Assunto particular. – torcendo para que não perguntassem mais nada.
Deu certo.

No dia marcado, sentada à frente do diretor, observava seu semblante enquanto ele lia o seu currículo.

– Mas você não tem experiência alguma. – disse ele sem levantar os olhos do papel.

E ela:

– Não senhor, nem teria como. Como o senhor pode ver, eu acabei de me formar. Mas, trabalho há seis meses num colégio estadual da periferia. Sei que isso não conta muito.

O diretor baixou os óculos para a ponta do nariz, olhou por cima deles, fez uma pausa, e com um sorriso irônico ele disse:

– Minha filha, posso te dar um conselho? Tenha sempre os olhos voltados para as estrelas, mas não esqueça de carregar com você um saco de sal pelo caminho. Não temos vaga para você neste colégio. Bom dia!

Inara sem graça, agradeceu, despediu-se e saiu da sala.

No caminho de volta para a casa pensou:
O que ele quis dizer com esse conselho? Com certeza está pensando que o colégio é muita areia pro meu caminhãozinho.

Naquela noite foi para a cama mais cedo. Precisava dormir e esquecer a ideia de trabalhar numa escola importante.

Alguns dias depois, ela estava na sala de casa quando o telefone tocou. Diziam ser do Porto Seguro e queriam falar com Inara Garcia.

– Sou eu, do que se trata?

– Você pode vir na semana que vem para uma entrevista com o dr. Binelli? – disse a voz do outro lado da linha.

A partir dali, Inara fez tudo automaticamente. Confirmou a data e horário da entrevista. O coração batia descompassado. Desligou o telefone. Seu pensamento fluía agitado. Achando que estava sozinha, disse em voz alta:

– Chamada para uma entrevista? Como eles tinham o número do meu telefone? Como sabiam que eu queria trabalhar lá?

A mãe, que observava tudo de longe, se aproximou e disse:

– Eu vou te contar, sente aqui. O seu pai, ao perceber que você não queria mais levar a carta de apresentação ao diretor geral do Porto Seguro, e vendo você tão triste, tomou uma decisão. Descobriu o endereço da casa dele, passou por lá e jogou a carta por debaixo da porta. Com certeza ele deve ter visto. Acho que você ainda tem chance de realizar o seu sonho, minha filha.

Inara não sabia o que pensar. Ficou feliz e ao mesmo tempo triste, com receio de rever a amiga. Apesar de decepcionada, não conseguia sentir raiva de Helena. Lembrou que tinha muito medo de trabalhar no subúrbio à noite, naquela região perigosa. Se conseguisse o trabalho no Porto Seguro, estaria mais tranquila e ganharia muito mais.

Quanto à Helena, pensou: – que seja feliz!

Chegou o dia da entrevista com dr. Binelli. Ela estava ansiosa e insegura. Sabia que dr. Binelli era um senhor mais velho, austero, sisudo e muito exigente.

– Ele nunca sorri. – era o que diziam os parentes.

Ao entrar na escola, ficou impressionada com o que viu. Era enorme, construção nova e moderna. Muitas árvores por todos os lados. Ficava no meio de um bosque no bairro do Morumbi.
Para lá, eles tinham se mudado alguns meses antes. Com a enorme expansão, tinham agora muitos alunos novos e com certeza precisariam de mais professores. Mas Inara não sabia disso até então.

A chegar, sentou-se na sala de espera do dr. Binelli na hora marcada. Após alguns minutos, a secretária veio até ela e disse:

– Podemos entrar – acompanhando-a até a porta da sala do diretor.
Era uma sala muito grande. Inara não sabia para que lado olhar. Admirava todo o mobiliário. Nas paredes, vários quadros grandes com molduras grossas de madeira. Vários tapetes do tipo persa espalhados pelo chão. Arranjos de flores estavam distribuídos por toda a sala. Mas o que mais a impressionou, foi a beleza da paisagem que se via pelas janelas. Eram árvores altas, em grande quantidade, cercando toda a escola. De um verde forte, elas exalavam um cheiro gostoso que penetrava naquele ambiente.
Lembrou-se da arvorezinha à beira da estrada, entre Angatuba e Itapetininga, que admirava semanalmente, quando por ela passava para ir às aulas de piano.

Então ela ouviu:

– Bom dia, pode entrar.

Ao fundo da sala, dr. Binelli estava sentado à uma mesa grande, também em estilo clássico de madeira escura. A cadeira era mais alta que ele.
Inara lembrou do conselho do saco de sal do diretor do Colégio Rio Branco. Sentiu vontade de fugir dali.

– Sente-se aqui por favor – acrescentou ele.

Ela percebeu que ele a examinava da cabeça ao pés com um ar desconfiado.

Pronto, lá vem outro conselho. – pensou.

Para sua surpresa, ele abriu um sorriso e disse:

– Mas você menina, quer ser professora ou aluna? Você parece mais uma aluna do nosso colegial.

Inara respondeu como uma segurança que não sabia de onde tinha vindo:

– Mas eu tenho experiência, trabalho em uma escola pública da periferia. São alunos bem difíceis de lidar, mas eu dou conta deles.

Ele não se importou com a resposta de Inara e sempre com um sorriso nos lábios, passou a falar de Angatuba.

– Ué, disseram que ele não sorria? – pensou.

Ele recordava e contava histórias de sua vida na cidade e na fazenda da família.

Ele não é nada daquilo que me falaram. Parece que estou conversando com um tio querido. – Inara pensava ao mesmo tempo que se sentia mais confortável.

Depois de algum tempo, dr. Binelli perguntou:

– Qual a sua disponibilidade de horário, já que você está trabalhando em outra escola?

Inara respondeu:

– O horário que precisar. Se me der a oportunidade de trabalhar aqui, eu peço demissão da outra escola. Ela fica muito longe de casa e eu dou aula até dez horas da noite, voltando para casa muito tarde. Tenho muito medo de trabalhar lá, pois é uma região bastante perigosa.

Dr. Bineli pediu um minuto, pegou o telefone, ligou para a diretora do curso primário e disse:

– Hercília, pode cancelar as outras entrevistas com os professores de música. Já temos  a professora que faltava. O nome dela é Inara Garcia. Ela irá em seguida para a sua sala. Veja tudo o que precisa para formalizar a contratação.

Desligou o telefone, levantou-se da cadeira, estendeu a mão para Inara e disse:

– Seja bem-vinda à família Porto Seguro.

Ele nunca falou sobre a carta de recomendação colocada debaixo da porta de sua casa.

Ao sair da sala, Inara não sabia se sorria ou se chorava.

Seu sonho estava se realizando. Só pensava na alegria que daria aos pais. Depois de passar na sala de Hercília, sentou-se em um dos bancos na área central da escola. Dali, podia avistar as árvores ao longe. Fechou os olhos, sentiu a brisa e o perfume da mata e deixou-se levar pelos pensamentos.
De repente, lembrou-se de Helena.
Vou ter de conviver com ela. Não sinto raiva, sinto pena, pois eu para estar aqui, não precisei passar por cima de ninguém. Já ela, penso que carregará essa culpa para sempre…ou não. Também, não me interessa mais. Página virada, ou melhor, rasgada.

Quando chegou em casa, deu a boa notícia aos pais. A mãe de Inara feliz e com aquele sotaque próprio do interior, disse:

– Minha filha, “o que é do home, o bicho não come!”

Pai, mãe e filha se abraçaram emocionados.

Será que um dia Inara confiará novamente em uma amiga, para chama-lá de “melhor”?

Próxima semana
Capítulo 12
Festa para a Rainha Silvia da Suécia

História inspirada em fatos reais, embora alguns eventos, personagens, nomes e locais, tenham sido criados para a composição literária. Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência. YG

 

 

5 comments on “INARA – capítulo 11 – “O que é do home, o bicho não come.””

  1. Juçara Paulucci disse:

    Cada dia MELHOR esse livro!
    Devoro cada capítulo!
    Todas tivemos essas “amigas” não???
    Esperando o próximo com ansiedade
    Bj grande amiga

    1. Yara disse:

      Ju, e Maria Ines as leitoras mais assíduas de Inara. Thank you and love you.

    2. João Edison Tobajas disse:

      Jo ⛅.

    3. Yara disse:

      ❤️❤️❤️

  2. Paula F Ventura Nogueira disse:

    Olá tudo bem com vc? Um conhecido em comum de Angatuba comentou sobre o seu livro e passou o link e ja li o capitulo da amiga fura olho. Um grande abraço Paula F Ventura Nogueira

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